Apelação Cível Nº 0000005-27.2021.4.02.5001/ES
RELATOR: Desembargador Federal GUILHERME COUTO DE CASTRO
APELANTE: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPIRITO SANTO - UFES (EMBARGADO)
APELADO: ROBERTO MORAES BUTICOSKY (EMBARGANTE)
ADVOGADO: ROBERTO MORAES BUTICOSKY (OAB ES009400)
APELADO: FELIPPE MORAES BUTICOSKY (EMBARGANTE)
ADVOGADO: ROBERTO MORAES BUTICOSKY (OAB ES009400)
RELATÓRIO
Trata-se de apelação interposta pela UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO – UFES.
A UFES combate a sentença que julgou procedentes os embargos de terceiro opostos por FELIPPE MORAES BUTICOSKY e ROBERTO MORES BUTICOSKY e determinou o levantamento da penhora lançada nos autos do processo n.º 0009657-64.2004.4.02.5001, sobre a fração de um quarto (¼) do imóvel localizado na Rua Celso Calmon, n.º 279, Ed. Lausanne, apt. 101, Praia do Canto, Vitória/ES (Matrícula 63.323) e um quarto (¼) de duas vagas de garagem (Matrículas 63.324 e 63.325).
Na petição inicial, aforada em março de 2021, os embargantes narram que o imóvel jamais integrou o patrimônio do devedor, MARCELO MALINI LAMEGO, pois foi adquirido em 29 de setembro de 1994, por Clovis Antônio Buticosky e Vera Lucia Moraes Buticosky em benefício dos seus filhos, Tatiana Buticosky Lamego (esposa do devedor executado), Roberto Moraes Buticosky e Felippe Moraes Buticosky, em negócio jurídico com caráter dotal e gravado com cláusula de incomunicabilidade. Assim, alegam que, embora o devedor seja casado sob o regime comunhão parcial de bens com Tatiana Buticosky Lamego, irmã dos embargantes, tal fato não lhe assegura a propriedade ou quaisquer outros direitos sobre o referido bem.
A execução foi determinada em cumprimento ao decidido nos autos da ação ordinária proposta pela UFES em face de MARCELO LAMEGO, na qual ele foi condenado a ressarcir os cofres públicos pela exoneração do cargo de professor assistente e descumprimento do tempo de permanência previsto pelo afastamento do docente para estudo ou aperfeiçoamento no exterior (Evento 1, OUT5 e 6).
Foi deferida a liminar (Evento 05).
Processado o feito, ao final sobreveio a sentença de procedência dos embargos, que considerou que, à época da aquisição do bem, o devedor era casado sob regime de comunhão parcial de bens, mas a fração do imóvel foi doada à esposa em copropriedade com os irmãos embargantes e com cláusula de incomunicabilidade (arts. 263, II, do Código Civil de 1916), por escritura devidamente registrada, de modo que incabível a restrição.
Em seu recurso, a UFES sustenta que não há interesse de agir, pois a penhora foi realizada apenas sobre a fração do imóvel de titularidade do executado MARCELO LAMEGO, e não sobre as frações pertencentes aos embargantes; que não houve doação alguma, mas sim compra e venda; que, em outubro de 1994, foram lavradas duas escrituras: a primeira, de compra e venda, tendo como adquirentes os ora embargantes, juntamente com sua irmã e o cunhado executado, e a segunda escritura, de usufruto vitalício em nome dos pais; que, em janeiro de 2007, enquanto já tramitava a execução fiscal, houve a renúncia ao usufruto vitalício dos pais dos embargantes, passando a propriedade plena aos nu-proprietários; que, ainda que houvesse doação, o executado e a irmã dos embargantes já eram casados sob regime de comunhão parcial, e não lhes era aplicável a cláusula de incomunicabilidade, pois não se poderia aplicar uma norma atinente ao regime de comunhão universal, já que há regra expressa para o regime de comunhão parcial (arts. 1.659, I, 1.660, III e 1.661, todos do CC/1916 vigente à época); que a cláusula de incomunicabilidade, de todo modo, não importa a impenhorabilidade do bem; que a totalidade dos bens e rendas do devedor respondem pelo pagamento de suas dívidas perante a Fazenda Pública (art. 30 da Lei n.º 6.860/80 e art. 184 do CTN), salvo quando declarados por lei como impenhoráveis, o que não é o caso. Daí o pedido de reforma da sentença e que seja mantida a penhora (Evento 37).
Em suas contrarrazões, os embargantes pugnam pela confirmação da sentença e reiteram que possuem interesse na propositura dos embargos, pois o devedor MARCELO LAMEGO, apesar de casado sob regime de comunhão parcial com a irmã dos embargantes, TATIANA B. LAMEGO, não possui qualquer direito sobre o bem, nem qualquer fração que pudesse ser penhorada; que, nos termos do art. 1.659 do CC/2002, é excluído da comunhão o bem adquirido na constância do matrimônio por doação, além dos arts. 263 e 269 do CC/1916; que a renúncia ao usufruto pelos pais não altera a realidade jurídica dos fatos, pois opera efeitos apenas em relação aos nu-proprietários (ou seja, aos irmãos ROBERTO, FELIPPE e TATIANA), e não se comunica ao devedor executado; que, embora não tenha sido formalizada uma doação literal, a escritura de compra e venda do imóvel pelos genitores, em favor dos filhos, contém cláusula de usufruto vitalício, instituto intrínseco à doação, o que demonstra seu inequívoco caráter dotal; que, ainda que se desconsidere a doação e se entenda que houve apenas compra e venda, foi aposta clausula expressa de incomunicabilidade; que a invocação dos arts. 30 da LEF e do art. 184 do CTN em nada alteram o quadro, pois se referem a bens do devedor, o que não é o caso, pois o bem penhorado, ou qualquer fração dele, jamais pertenceu ao executado (Evento 44).
É o relatório.
GUILHERME COUTO DE CASTRO
Desembargador Federal – Relator
VOTO
O apelo não merece ser provido.
A sentença é mantida por seus próprios fundamentos, que passam a integrar o presente voto, evitando-se transcrição, e pelos motivos que se lhe acrescem, na forma adiante alinhada.
De início, a UFES tenta a todo tempo tratar o cumprimento do julgado na ação principal como se fosse uma execução fiscal, mas não é o caso. Trata-se, como já dito, de sentença proferida em ação ordinária em face de seu antigo servidor, MARCELO LAMEGO, que descumpriu a quarentena e pediu exoneração após ter concluído curso de doutorado no exterior, e agora deve indenizar os cofres públicos pelo investimento realizado.
Por essa razão, os artigos invocados pela Universidade em seu apelo (art. 30 da Lei n.º 6.860/80 e art. 184 do CTN) evidentemente não se aplicam, pois não se trata de execução fiscal, muito menos de crédito tributário.
No mais, é inequívoco que houve doação dos imóveis aos filhos, com cláusula de incomunicabilidade. Seja pela doação na vigência do matrimônio sob regime de comunhão parcial, seja pela cláusula citada, não há fração ideal dos bens que tenha sido comunicada ao devedor e que agora possa ser penhorada.
De fato, foi registrada a escritura de compra e venda da nua propriedade em outubro de 1994 (R-2-29.443). Os adquirentes que constaram do registro foram os filhos, quais sejam: TATIANA LAMEGO, já casada à época sob regime de comunhão parcial de bens com o devedor, MARCELO LAMEGO, bem como os irmãos ora embargantes, ROBERTO e FELIPPE, ambos solteiros e menores “púberes” à época. Ali consta expresso que “o imóvel objeto da presente matrícula ficará gravado com cláusula de incomunicabilidade” (Evento 1, OUT4).
A íntegra da escritura de compra e venda é nítida ao descrever que a compra, na verdade, foi feita pelos pais CLOVIS ANTONIO BUTICOSKY e VERA LÚCIA MORAES BUTICOSKY “para os seus filhos TATIANA [...], ROBERTO [...] e FELIPPE” (Evento 1, OUT7). Ali consta também a declaração dos vendedores de que o preço foi pago integralmente pelos pais, em moeda nacional.
Ou seja, ainda que questionável a escolha da escritura de compra e venda para realizar diretamente a doação, quiçá para evitar os tributos incidentes, é inequívoca e expressa a intenção dos pais de doar os bens para os filhos (imóvel e vagas de garagem).
No mesmo documento, os três filhos, inclusive os dois menores assistidos pelos próprios pais, declararam sua aceitação (p. 05, Evento 1, OUT7).
O usufruto vitalício em favor dos pais CLÓVIS e VERA LÚCIA, que também constava daquela mesma escritura, foi registrado na mesma data e logo a seguir na matrícula do imóvel (R-3-29.443).
Posteriormente, houve a renúncia ao usufruto, averbada em janeiro de 2007 (AV-7-29.443).
A certidão de casamento de TATIANA e do devedor MARCELO, em julho de 1992, consta do Evento 1, OUT8.
Ou seja, o bem foi adquirido pelos genitores e, no mesmo ato, foram doados aos filhos, com cláusula de incomunicabilidade.
Como dito na decisão liminar: “assim, havendo registro, na matrícula dos imóveis, de cláusula de incomunicabilidade, apenas os verdadeiros adquirentes/donatários - TATIANA, ROBERTO e FELLIPE - são os exclusivos detentores do título dominial sobre os referidos bens, de modo que eles não podem ser objetos de penhora por dívida do cônjuge, ainda que o casamento tivesse sido celebrado no regime mais amplo, de comunhão universal de bens, nos termos do que dispunha o art. 263 do Código Civil de 1916, vigente à época da celebração do negócio jurídico, regra replicada no legislação atual (art. 1.668)”.
Curioso notar que, a adotar-se a linha da UFES, o devedor não possuiria um quarto (1/4) do imóvel como no pedido de penhora feito na ação principal, mas sim dividiria a terça parte (1/3) que coube à irmã TATIANA, pelo casamento. Ou seja, se admissível a penhora, ela deveria incidir apenas sobre um sexto (1/6) do bem.
O cônjuge foi mencionado na escritura de compra e venda não como adquirente, mas apenas como marido de TATIANA, de modo que não lhe coube, à época, uma fração ideal específica juntamente com os demais filhos dos adquirentes, em divisão em quatro partes iguais. Dividiria, no máximo, a porção dada à irmã TATIANA, na qualidade de sua esposa, e nada mais.
Isso é apenas mencionado para mostrar o erro do raciocínio da apelante. Mas o fato é que, diante do registro da cláusula de incomunicabilidade, é inadmissível a penhora de suposta fração ideal que caberia ao cônjuge, pois são excluídos da comunhão os bens doados nesta condição, nos termos do art. 269, I, do CC/1916.
Sobre o tema, além da jurisprudência mencionada na sentença, importa acrescentar os seguintes excertos:
HOMOLOGAÇÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA DE DIVÓRCIO PROFERIDA NOS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. REGIME DE COMUNHÃO PARCIAL DE BENS. IMÓVEL ADQUIRIDO POR MEIO DE DOAÇÃO, COM CLÁUSULA DE IMPENHORABILIDADE E INCOMUNICABILIDADE. ART. 1.659, I, DO CC. [...]
Ainda que comprovado nos autos que a divisão de bens determinada pela Corte americana tivesse como fundamento um acordo firmado entre as partes, deve-se considerar a impossibilidade da inclusão do imóvel no patrimônio conjunto dos cônjuges. O regime de bens adotado pelo casal quando da celebração do casamento foi o da comunhão parcial e o referido imóvel foi adquirido pelo requerido, ora contestante, por meio de doação (com as cláusulas de impenhorabilidade e de incomunicabilidade), o que, diante do art. 1.659, I, do Código Civil, o exclui da comunhão.
4. Pela impenhorabilidade, o bem não pode ser dado ou tomado em garantia. Já pela cláusula de incomunicabilidade, o bem integra o patrimônio particular do beneficiado, não entrando na comunhão em virtude do casamento, qualquer que seja o regime de bens adotado. [...]
6. Pedido homologatório parcialmente deferido para excluir a divisão de bens proposta pela justiça americana, por afrontar as determinações da legislação pátria (art. 1.659, I, do CC/2002) e ofender a ordem pública brasileira (art. 6º da Resolução/STJ nº 09, de 04/05/2005).(grifos nossos)
(STJ, SEC 2222/US, Corte Especial, Rel. Min. JOSÉ DELGADO, DJ 11/02/2008, p. 52)
“PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS DE TERCEIRO. EXECUÇÃO FISCAL. PENHORA DE IMÓVEL DOADO A MULHER CASADA PELO REGIME DE COMUNHÃO PARCIAL DE BENS. INCOMUNICABILIDADE. CASAMENTO REALIZADO SOB A ÉGIDE DO CÓDIGO CIVIL DE 1916. SENTENÇA MANTIDA.
1. Questão controvertida respeitante à comunicação entre os cônjuges, casados no regime de comunhão parcial de bens, dos bens oriundos de doação gratuita, durante a constância do casamento.
2. No caso, os documentos comprovam que casamento ocorreu em 19/05/1990, ocasião em que os nubentes adotaram o regime de comunhão parcial de bens.
3. Tendo o casamento se realizado antes da entrada em vigor do atual Código Civil (Lei nº 10.406, de 10/01/2002), tem-se, como preceitua o art. 2.039, deste, que, "O regime de bens nos casamentos celebrados na vigência do Código Civil anterior, Lei no 3.071, de 1º de janeiro de 1916, é o por ele estabelecido. " Aplicável, portanto, o disposto no art. 269, inc. I, do Código Civil de 1916 (correlato ao art. 1659, inc. I, do Código Civil vigente), segundo o qual no casamento regido pelo regime de comunhão parcial de bens, os bens advindos de doação ou sucessão são excluídos da comunhão entre os cônjuges.
4. No caso, imóvel foi, de fato, objeto de doação à ora embargante e seus irmãos, na proporção de 25% (vinte e cinco por cento) para cada um, por parte seus progenitores, com reserva de usufruto aos doadores, nos termos da escritura pública de 25/05/2001, tendo sido devidamente averbada no registro de imóveis.
5. O nome do cônjuge da embargante constou da escritura de doação somente na condição de marido daquela e não como donatário, visto restar clara a intenção dos doadores de excluir os respectivos cônjuges dos filhos da referida transmissão gratuita de bens aos descendentes.
6. Os doadores não fizeram qualquer ressalva quanto aos cônjuges dos filhos e, no regime de comunhão parcial de bens, não havendo menção expressa do doador, o imóvel recebido por doação é de propriedade exclusiva do donatário. Precedente do C. STJ. 7. Apelação a que se nega provimento.
(TRF 3ª Região, AC 0017110- 51.2009.4.03.9999, Segunda Turma, Rel. SOUZA RIBEIRO, DEJF 30/05/2018).
EMBARGOS DE TERCEIRO. REMESSA OFICIAL CONSIDERADA INTERPOSTA. ESCRITURA PÚBLICA. DOAÇÃO EM BENEFÍCIO DE APENAS UM DOS CÔNJUGES. REGIME DA COMUNHÃO PARCIAL DE BENS. INCOMUNICABILIDADE. ÔNUS SUCUMBENCIAIS.
1. Conquanto a sentença tenha sido publicada após a inclusão do § 2º no art. 475 do CPC, o direito controvertido é de valor superior a sessenta salários mínimos, devendo ser considerada como interposta a remessa oficial.
2. De acordo com o art. 269, I, do CC de 1916, com a redação vigente na época da doação, no regime da comunhão parcial, o bem recebido por doação em benefício de um dos cônjuges não faz parte do patrimônio comum do casal. Tal bem, portanto, é excluído da comunhão por expressa previsão legal
3. Considerando que o regime de bens adotado com o casamento foi o da comunhão parcial e tendo em vista que o bem doado em benefício de apenas um dos cônjuges não faz parte do patrimônio comum do casal, chega-se à conclusão de que o imóvel penhorado pertence a pessoas alheias à execução fiscal.
4. Mantida a condenação da Fazenda Nacional ao ressarcimento das custas despendidas pela embargante, assim como ao pagamento dos honorários advocatícios, nos termos fixados pelo MM. Juízo a quo, porquanto em conformidade com o disposto no art. 20, § 4º do CPC.
5. Apelação e remessa oficial improvidas.
(TRF 4ª Região, AC 5010891-66.2012.4.04.7100, Rel. JOEL ILAN PACIORNIK, Primeira Turma, D.E. 13/06/2013).
EMBARGOS DE TERCEIRO - PENHORA DE BEM PERTENCENTE AO CÔNJUGE - DOAÇÃO COM CLÁUSULA DE INCOMUNICABILIDADE - CONSTRIÇÃO ILEGAL
1. A cláusula de incomunicabilidade na doação de imóvel apenas o integra ao patrimônio particular do beneficiado, excluindo-o da comunhão, independentemente do regime do casamento. Inteligência dos artigos 1.667 e 1.668, I do Código Civil. Precedentes do C. STJ e da Sexta Turma deste Tribunal.
2. Insubsistência da penhora efetuada na execução, por ter sido comprovado pertencer a parte constrita do imóvel apenas ao cônjuge do executado. Embargos de terceiro procedentes.
3. Honorários advocatícios mantidos no percentual fixado na sentença, porquanto foram arbitrados com atenção ao disposto no artigo 20, §4º, do CPC.
(TRF 3ª Região, AC 1207039-93.1998.4.03.6112 , Rel. MARINA MAIA, Sexta Turma, e-DJF3 Judicial 1 DATA:08/03/2010 PÁGINA: 370).
Voto por negar provimento à apelação, com majoração da verba honorária em 1% sobre o montante final resultante do percentual aplicado pela sentença.
Documento eletrônico assinado por GUILHERME COUTO DE CASTRO, Desembargador Federal Relator, na forma do artigo 1º, inciso III, da Lei 11.419, de 19 de dezembro de 2006 e Resolução TRF 2ª Região nº 17, de 26 de março de 2018. A conferência da autenticidade do documento está disponível no endereço eletrônico https://eproc.trf2.jus.br, mediante o preenchimento do código verificador 20001037152v3 e do código CRC 52be959b.
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